A criança intersexo enfrenta desafios únicos em uma sociedade onde a discussão sobre diversidade de gênero e identidades não-binárias tem ganhado espaço significativo, mas ainda não contempla adequadamente esse grupo.
Atualmente, estima-se que 1 a cada 4.500 nascimentos seja de bebês intersexo, o que corresponde a cerca de 2.500 crianças de 0 a 15 anos somente no estado de São Paulo, segundo dados do IBGE de 2018. No entanto, esse número pode ser ainda maior, já que a ONU estima que entre 0,5% e 1,7% da população global possui características intersexo, abrangendo variações biológicas que não se enquadram nas definições típicas de masculino ou feminino.
O que é uma criança intersexo?
“Intersexo” é um termo amplo que engloba diversas condições médicas em que os marcadores biológicos de sexo, como órgãos genitais, gônadas, níveis hormonais ou cromossomos, não se enquadram nas expectativas típicas de “masculino” ou “feminino.” Esse termo abrange mais de 20 condições em que bebês nascem com genitália, órgãos reprodutores ou cromossomos que não correspondem às definições tradicionais de masculino ou feminino. Essas variações incluem desde genitália ambígua até discrepâncias entre genitais e órgãos internos, ou combinações cromossômicas incomuns. Em certos casos, podem ser necessárias cirurgias de emergência por razões médicas, enquanto em outros, são discutidas intervenções para alinhar a anatomia ao padrão binário, geralmente realizadas nos primeiros meses de vida.
A Intersex Human Rights, apoiada pela ONU, define “intersexo” como uma categoria que inclui características sexuais congênitas que não se ajustam às normas médicas e sociais estabelecidas para corpos masculinos ou femininos, o que pode expor essas pessoas a estigmas e discriminações. Os Princípios de Yogyakarta +10 ampliam essa definição para incluir características físicas relacionadas ao sexo, como cromossomos, órgãos genitais, hormônios e características secundárias que se manifestam na puberdade.
Nesse contexto, “intersexo” pode ser descrito como um “guarda-chuva” que abrange uma variedade de variações sexuais. As pessoas com essas variações podem se identificar de diferentes formas, como intersexuais, pessoas com uma variação ou condição intersexual, ou ainda nomeando traços específicos. Algumas preferem o termo “variação inata de características sexuais” para definir suas experiências.
De acordo com o psiquiatra e engenheiro biomédico Vernon Rosario, “a biologia molecular da determinação do sexo tornou-se muito mais complexa nos anos seguintes.” Ele observa que, para as pessoas intersexuais, essa complexidade vai além da questão do sexo; é também uma questão de saúde. “Tal complexidade biológica e genética requer um nível cada vez mais microscópico – na verdade, molecular – de compreensão do sexo em pessoas intersexuais e, provavelmente, para um número cada vez maior de pessoas com condições intersexuais não diagnosticadas”, afirma Rosario em um artigo.
A luta pelos direitos das pessoas intersexo
Os grupos compostos por pessoas intersexo têm intensificado sua mobilização global para que a intersexualidade seja reconhecida como uma variação natural, e não como uma patologia. Esses grupos lutam contra as cirurgias “reparadoras” realizadas após o nascimento, que muitas vezes envolvem mutilação e moldagem dos órgãos genitais sem que essas intervenções estejam alinhadas com as identidades de gênero ou orientações sexuais dos indivíduos.
Nesse contexto, os ativistas intersexo defendem a criação de leis em todo o mundo que proíbam cirurgias genitais eletivas e irreversíveis, realizadas sem consentimento informado, exceto em situações de risco de vida. Países como Alemanha, Portugal e Nova Zelândia já implementaram essas recomendações.
No Brasil, a jornalista e fotógrafa Céu Albuquerque tornou-se a primeira pessoa intersexo do país a conseguir a retificação de seu nome e sexo na certidão de nascimento, após enfrentar oito cirurgias para corrigir mutilações sofridas na infância.
Embora existam poucas evidências sobre os benefícios ou prejuízos do adiamento dessas cirurgias, há um consenso internacional de que alternativas à intervenção precoce, como apoio às famílias e acompanhamento psicológico, proporcionam melhores resultados. No entanto, essas práticas ainda não são amplamente adotadas pelos sistemas de saúde pública. Além disso, há relatos de que muitos pacientes não foram devidamente consultados sobre as intervenções, o que reforça a necessidade de desenvolver abordagens mais adequadas para cuidar de crianças com genitália atípica, coletar dados sobre os resultados psicossociais e definir o papel da cirurgia no tratamento das Diferenças do Desenvolvimento do Sexo (DDS).
As cirurgias de “normalização” ou “reconstrução genital,” como labioplastias, vaginoplastias, remoção do clitóris, gonadectomias e correções de hipospádias, são controversas, pois não há consenso médico sobre sua necessidade ou momento ideal. Essas intervenções podem violar os direitos humanos, especialmente quando resultam em esterilização forçada.
A ONU destaca que “a suposição de que uma mulher não deve ter testículos pode levar à realização de uma cirurgia, sem consentimento, comprometendo o potencial de fertilidade futuro com o uso de novas tecnologias.” Em 2015, a Organização das Nações Unidas publicou sua primeira nota informativa sobre os direitos de pessoas intersexo, convocando os governos a proibirem “cirurgias forçadas e coercitivas e outros procedimentos médicos desnecessários,” especialmente em crianças sem consentimento.
Intervenções médicas e a ética
Uma das maiores controvérsias sobre os direitos das crianças intersexo envolve as cirurgias “corretivas” realizadas na infância, que têm como objetivo modificar a anatomia para se alinhar ao gênero socialmente atribuído ao nascimento. Esses procedimentos são frequentemente feitos sem necessidade médica, expondo os indivíduos a riscos para a saúde física e mental. As cirurgias de “normalização” são amplamente criticadas por especialistas em bioética e organizações de direitos humanos, que as consideram violações dos direitos humanos por serem realizadas sem o consentimento do paciente, que, por ser criança, não tem capacidade de tomar decisões informadas.
Os riscos dessas intervenções incluem complicações físicas, como dor crônica, perda de função sexual, infertilidade e impactos psicológicos, como transtornos de identidade e traumas emocionais. Em 2017, a Human Rights Watch ressaltou que tais procedimentos podem levar a incontinência urinária, perda de sensação e função sexual, traumas psicológicos e transtorno de estresse pós-traumático, além de necessitar de terapia de reposição hormonal ao longo da vida. Outro risco significativo é que, embora os genitais sejam modificados para uma aparência mais “compatível” com o sexo masculino ou feminino, a criança pode crescer e não se identificar com o gênero atribuído.
Diversas organizações, como a União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU), a Academia Americana de Médicos de Família, a Anistia Internacional, as Nações Unidas e a Organização Mundial da Saúde, já se posicionaram contra cirurgias desnecessárias em crianças intersexo. Em resposta ao relatório da Human Rights Watch, a Academia Americana de Pediatria (AAP) reconheceu a “necessidade urgente de novas pesquisas sobre os resultados dos tratamentos e as melhores maneiras de apoiar as crianças e suas famílias.” Além disso, a AAP destacou a importância de um “diálogo aberto e transparente entre a equipe médica e os pais, para que estes compreendam completamente a condição de seu filho e os riscos e benefícios de qualquer tratamento proposto, incluindo alternativas, como adiar a cirurgia.”
O papel dos pais e cuidadores
É natural questionar o que significa uma criança intersexo e como oferecer a melhor criação, considerando abordagens que podem incluir a criação como menino, menina ou de forma neutra. O mais importante é tomar decisões baseadas em princípios de respeito e consideração pelo futuro da criança, reconhecendo que a linguagem e a cultura estão em constante transformação.
Para isso, é essencial buscar informações de qualidade e refletir sobre o que constitui uma boa educação, entendendo que brinquedos não têm gênero e são apenas objetos que promovem diversão e aprendizado. A criação deve focar no desenvolvimento integral da criança, oferecendo uma variedade de estímulos para apoiar seu crescimento.
Embora a criança possa ser criada com roupas e atividades culturalmente associadas a um gênero específico, é fundamental que os pais estejam abertos à possibilidade de que, no futuro, ela se identifique de maneira diferente. Ter uma criança intersexo também envolve aceitar a diversidade e compreender que a identidade de gênero pode se manifestar de formas únicas.
O apoio da família é o fator mais importante para garantir que a criança tenha um ambiente seguro e acolhedor, onde possa se expressar livremente e ser feliz, independentemente de como venha a entender sua própria identidade de gênero ao longo do tempo.
O papel da escola
A educação desempenha um papel essencial na eliminação do preconceito e na defesa dos direitos, ajudando a esclarecer o que significa uma criança intersexo para todos. Incorporar discussões sobre intersexualidade e diversidade corporal nos currículos escolares é fundamental para que as novas gerações cresçam com uma compreensão mais ampla das variações humanas, desenvolvendo o respeito pelas diferenças. Ao abordar esses temas nas aulas de ciências ou biologia, por exemplo, os alunos podem aprender desde cedo sobre a existência de pessoas intersexo de forma natural e inclusiva, o que contribui para a criação de um ambiente escolar mais acolhedor e informado.
Para garantir que a escola esteja preparada para lidar com as necessidades de uma criança intersexo, é importante que os pais mantenham um diálogo aberto com a instituição. Fornecer informações à equipe pedagógica, como orientações sobre a escolha do banheiro mais adequado para a criança ou a importância de evitar divisões binárias, como filas separadas por gênero, ajuda a criar um espaço mais inclusivo. Além disso, compreender o que significa uma criança intersexo orienta a escola a respeitar a identidade de gênero da criança, assegurando que não se recuse sua matrícula por ser intersexo.
Acima de tudo, é essencial que a criança seja ouvida e que sua identidade e escolhas sejam respeitadas, proporcionando um ambiente de aprendizado seguro e inclusivo. A conscientização sobre a intersexualidade contribui para a construção de uma sociedade mais justa, onde todos se sintam valorizados e respeitados, independentemente de suas características biológicas.
As organizações de apoio
A busca por respostas para a pergunta “o que é uma criança intersexo” tem impulsionado o surgimento de diversas organizações que oferecem suporte essencial a essas crianças e suas famílias. Entre elas, destaca-se a Associação Brasileira Intersexo (ABRAI), que tem desempenhado um papel fundamental na desmistificação da intersexualidade e na disseminação de informações precisas. A ABRAI enfrenta desafios como a discriminação e as intervenções médicas desnecessárias, que são comuns para essa população.
Nos últimos anos, a conscientização sobre o que é uma criança intersexo e os abusos específicos de direitos humanos que elas enfrentam tem crescido, graças ao trabalho incansável de defensores dos direitos humanos intersexuais, como reconhecido pela ONU. Esses abusos incluem práticas como infanticídio, intervenções médicas forçadas e coercitivas, além da discriminação em áreas como educação e emprego. Também existem dificuldades significativas no acesso à justiça e a cuidados de saúde adequados.
Em resposta a essas questões, agências da ONU têm promovido campanhas de conscientização sobre a intersexualidade, buscando alertar o público e os governos sobre a necessidade de garantir os direitos e cuidados apropriados para essas pessoas. A atuação da ABRAI é crucial nesse contexto, contribuindo para uma maior inclusão e respeito às identidades intersexo na sociedade.
Relatos pessoais
Apesar das adversidades enfrentadas, muitas pessoas intersexo têm se destacado na luta por seus direitos, compartilhando suas histórias para inspirar outras pessoas e promover a conscientização.
Kimberly Zieselman, uma advogada americana, descobriu que era intersexo aos 41 anos, quando já era casada e mãe de duas filhas. Ela lembra que, aos 15 anos, foi levada ao médico pelos pais devido à ausência de menstruação, o que resultou em uma cirurgia feita sem seu consentimento. “Eu então comecei terapia de reposição hormonal, e me disseram que eu não deveria falar sobre o assunto, que era privado, que era raro, e que eu era provavelmente a única pessoa no mundo com essa condição”, relembra Zieselman. Ela lamenta o impacto emocional e físico que essa decisão teve em sua vida, incluindo a necessidade de tomar hormônios pelo resto da vida, um aspecto que, segundo ela, poderia ter sido evitado se os testículos internos tivessem sido mantidos.
Lesley Holroyd, de 62 anos, compartilha uma experiência diferente. Nascida com órgãos reprodutivos femininos, mas com genitália externa atípica, foi submetida a uma cirurgia para modificar seus genitais aos quatro anos de idade. “Graças a isso, não tenho lembranças horríveis ou dolorosas”, observa. “Sou grata por essa decisão tomada por meus familiares e médicos, que me permitiu aproveitar minha infância como qualquer outra criança, sem constrangimento.”
Essas narrativas destacam a diversidade de experiências entre as pessoas intersexo e a importância de decisões informadas e respeitosas em suas vidas. Elas também ressaltam a necessidade de uma abordagem mais compreensiva em relação às questões de gênero e identidade.
Conclusão
Para que uma criança intersexo possa ter uma vida plena, é essencial que a sociedade, os profissionais de saúde, legisladores e educadores atuem em conjunto na defesa de seus direitos. Isso inclui proteger a autonomia corporal da criança, garantir acesso a serviços de saúde que atendam às suas necessidades específicas e promover um ambiente educacional livre de preconceitos.
A construção de uma sociedade verdadeiramente inclusiva requer o reconhecimento da diversidade humana em todas as suas formas. Respeitar os direitos das crianças intersexo e oferecer o apoio necessário são passos fundamentais para superar as limitações do binarismo de gênero.
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